domingo, 29 de junho de 2014

Sobre imagens e ofícios.

 Em nosso cotidiano, naturalizamos várias coisas que deveríamos tomar por nocivas. Uma delas diz respeito à profissão e à forma como nos vemos. 
    Certa vez, propositalmente, perguntei para uma aluna: sua mãe é o quê?. Era me respondeu: pedagoga. Prontamente respondi: a minha é bonita. Como minha réplica causou estranheza, lancei o questionamento: por que quando perguntamos se alguém é algo, a resposta é pronta e logo diz respeito ao ofício?
    Além de pensarmos em nossos ofícios como algo tão importante, ao ponto de sempre sermos professores, arquitetos, seguranças; temos um outro hábito, um tanto estranho: aprendemos a confundir nossos trabalhos com as imagens que eles representam. E esse ponto é o mais sério, sobretudo, quando as imagens são cada vez mais representativas em nossa autocompreensão.
    Não é novidade que as pessoas têm se preocupado mais em fotografar um show, do que contemplar as músicas. Fotografamos a comida, nas exposições, buscamos nosso melhor ângulo junto às obras expostas. Mas e nossa profissão? Onde entra nesse construir de imagens? Há muito, já se discute que as profissões poderiam ser formas de materializarmos nosso talento em busca do bem comum, enquanto se tornaram meros mecanismos de consumo ou se subsistência. Agora, vivemos em uma era onde os ofícios têm se resumido à sua possibilidade estéticas. 
    Ser advogado é sinônimo de um escritório com nome na porta, terno combinando com mochila e chopp às 18 horas, na calçada; Médicos viraram pessoas com letras indecifráveis, consultório e certezas; professores são santos dignos de todo respeito e admiração, pessoas abnegadas e construtoras do amanhã... Perdemos a dimensão do ofício como contribuição física, intelectual e material. Não é muito raro, um médico que só repita receitas e venha a se irritar, se por um acaso, o paciente não coma carne, ou não receba sangue. Se for alérgico à dada medicação, pobre coitado! Afinal, para que vamos nos preocupar em emprestar nosso conhecimento à diversidades humanas, se podemos condensá-los em  um paciente idealizado e homogêneo. Em meu consultório, eu digo que é o paciente e como ele deve ser! 
    Quantos adolescentes não sonham com a faculdade de direito e todo charme que ela oferece, desde os tempos quando jovens abastados largavam os mosquitos tropicais para representarem suas aristocráticas famílias em Lisboa ou Paris. Ora, hei de ser um advogado, um homem de leis e ternos bonitos. Deram-me, até, uma honraria acadêmica justificada por palavras do próprio Imperador.     Não há no mundo imagem mais bela do que a de um professor. Ainda que seu esforço intelectual seja restrito às apostilas de concursos, que ele se restrinja a ler o livro feito para seus alunos e que sempre tenha como recurso para os seus fracassos, culpabilizar aquele que menos pode se defender, ele é o abnegado construtor de países e futuros, merecedor das mais nobres honrarias. Salário digno, nem pensar. Quem o tem é mercenário!
    O que esses casos extremos têm em comum? A imagem. São pessoas que se constroem por e para um aparato estético que justifique a forma como ele se vê no mundo. O esforço intelectual foi trocado pela construção de possibilidades estéticas que viabilizem os discursos e legitimem um posto social. “Você quer saber mais do que eu? Eu sou professor (advogado, escritor, filósofo, jornalista), ora bolas”. Mas para que isso funcione, eu vou me valer dos mecanismos aprendidos ao longo de minha formação? Não preciso, pois se lutamos a cada dia para construir imagens que nos situem no mundo, seria injusto ainda ter que me preocupar com aprofundamentos teóricos e reflexões diárias acerca de minha prática profissional.”
    Penso que, partindo desse ponto, podemos ir um pouco além e pensarmos nas provas. O que são as provas, senão legitimações intelectuais que se restringem a si mesmas? Não que não sejam valorosas. Elas têm, sim, o seu valor. Mas elas podem não ter valor algum, se forem só uma forma de legitimar o jovem postulante a uma profissão e o esforço didático de seu professor. Então, estaríamos transformando nossas universidades em fábricas de pessoas que exercem profissões com uma dada chancela que tende a ser definitiva e inconteste.
    Mas podemos ir um pouco mais longe. Podemos pensar na imagem que criamos de um bom aluno e todo aparato estético que o cerca. Ele tira 100 acertando questões que dizem pouco ou nada para ele, e ele sabe que não precisa se aprofundar em dado assunto, pois é esperto o bastante para saber o caminho da nota máxima. A imagem de um bom aluno é de alguém que aprendeu que Chico Buarque cabe no capítulo sobre ditadura, mas não para pensar no quanto deve ser triste um barco descrever lentamente um arco e não atracar no cais. Sabe Deus o que deve ser o revés de um parto. A imagem de um bom aluno é o que contextualiza Monteiro Lobato, mas pouco se prende a rir de seus personagens, não sabe que Drummond já falou sobre guerras. A imagem de um bom aluno é o arquétipo da negação do todo, pela valorização da superfície, posto que é imagem. 
    Então, o ator que não gosta de teatro, o poeta que vai ao sarau só para divulgar seus livros, o professor que não lê... São quadros em duas dimensões pintados à muitas mãos.