terça-feira, 30 de outubro de 2012

O TEATRO DA VILA CRUZEIRO OCUPANDO ESPAÇOS FÍSICOS E SIMBÓLICOS.


O que o teatro pode fazer pelos jovens da Vila Cruzeiro? Pergunta um jornalista ao professor e diretor teatral, Veríssimo Júnior. A resposta nos dá uma dica do que podemos esperar do grupo Teatro Na laje. Responde o professor: “a melhor pergunta seria o que os jovens da Vila Cruzeiro podem oferecer ao teatro?
            O espetáculo apresentado na Arena Carioca Dicró possui o nada sugestivo nome de "A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa página do Facebook". O nome descrição apresenta todo seu sentido quando a busca por Canaã de Ipanema é acompanhada por passagens bíblicas que ilustram os registros fotográficos da “Jornada” de um grupo de jovens até o dia de lazer na praia. A Zona Sul vira Canaã, o facebook vira narrativa bíblica e os peregrinos passam a ser os heróis de uma jornada de ressignificações e apropriações estéticas que tomam conta do teatro, das músicas, da geografia do Rio de Janeiro e têm como ponto de partida, o corpo.
            A pesquisadora Adriana Carvalho Lopes, ao estudar o Funk e a criminalização sofrida por jovens da periferia, aponta os atos de fala como possibilidades compreensíveis pelo contexto onde estão inseridos existindo, assim, uma situação em que um ato de fala constrói um ambiente e por ele será construído. Tudo isso ocorre em uma teia complexa de mútua construção. Citando Butler Austin, Adriana aponta os atos de fala como elementos irredutíveis a si próprios, posto que são impregnados de historicidade¹.
            É nesse ponto, que retomamos a intervenção do professor Veríssimo, pois a apresentação dos atores da Vila Cruzeiro nos trazem uma infinidade de intervenções em elementos tão estanques da nossa cultura. Primeiro, a própria ocupação do teatro e a forma como isso acontece já se transformam em uma forma de ação sobre um universo cultural repleto de liturgias e significados cristalizados no imaginário de seus frequentadores: a plateia passiva e receptiva “consumindo” cultura e aplaudindo na hora de aplaudir, rindo na hora de rir e se vestindo como convém se vestir. Então, o que a Vila Cruzeiro pode oferecer ao teatro? A resposta fica no depoimento dado pelo Professor (no facebook, claro):
 
“Celebração dionisíaca pura na noite da última sexta-feira! Jovens de bermuda, tênis e chinelo, (...) adentra o espaço da Arena Carioca Dicró, naquele momento transformada em SEU espaço, para ver o grupo de teatro de sua comunidade, o Grupo Teatro da Laje, se apresentar. Uma liga firme unia palco e plateia. A plateia alimentava o palco e o palco alimentava a plateia. A plateia se via no palco e o palco se via na plateia, num jogo de espelhos excitante, eletrizante e produtivo. A plateia cantava e dançava com o palco e o palco descia pra cantar e dançar com a plateia. Gritos, assobios, palmas, urros e comentários dirigidos ao palco perpassavam o tempo todo a plateia. "Uma plateia má educada e despreparada para o teatro!", esbravejariam alguns. "Uma plateia que reinventa o coro dionisíaco, que revigora o teatro, que o faz reviver os melhores tempos do teatro elizabetano. Uma plateia criada e formada pelo Grupo Teatro da Laje e da qual ele muito se orgulha!", dizemos nós. EVOÉ, EVOÉ, BACO! VIVA O GRUPO TEATRO DA LAJE! VIVA A GALERA DA VILA CRUZEIRO!”
 
            A afirmação do professor é totalmente condizente com o que vê, na apresentação, um expectador leigo. A “bagunça” começa com os atores entrando, já cantando e promovendo a primeira performance da noite. A plateia repleta de jovens como os já descritos recebe os atores em sintonia com o que acontece no palco.          
O cenário é simples e totalmente utilitário, com isso, o elenco promove performances que acompanham as músicas, enquanto a plateia acompanha as cenas que acontecem no palco. Música dançada no palco é música dançada na plateia. Quando um enaltece seu próprio corpo e beija seu braço em uma irônica auto exaltação, a plateia assovia e incentiva o narcisismo exagerado e cômico que presencia. Ao perceber a reação da plateia, nosso narcísico personagem dá lugar ao ator que lança olhares maliciosos para a plateia em um distanciamento digno das grandes teorias teatrais.
            Assim, segue o espetáculo... Música, humor e sensualidade em uma crítica social que não se faz em panfletos ou manifestos, mas na manifestação de corpos, vozes e posturas de jovens que retratam todos os significados de uma simples (ou não) ida à praia.
            São várias as expressões e representações que o grupo busca em sua performance. A cada música, uma apropriação diferente de um elemento cultural e uma criação nova, uma fala nova se refaz. “Nós Vamos Invadir sua Praia”, do Ultraje a Rigor é mais viva do que nunca, quando interpretada dessa forma.
            Num dado momento, uma obra de Vivaldi se mistura à batida Funk em um grande exemplo de apropriação do intacto, daquilo que é culturalmente santificado e inconteste. A batida Funk misturada à obra clássica serve de plano de fundo para que os atores se manifestem, também, e interajam com o som e, novamente, com a plateia.
            A apropriação da cultura, como afirmou o Professor Veríssimo, não fica no simples gesto do “como fazer” e do fazer diferente. Não se trata de chegar no teatro e mostrar o que eles podem fazer, se trata de ocupar o teatro enquanto conceito, enquanto elemento pulsante e vivo, que transforma jovens, mas é transformado por eles. Como afirma o professor:
 
“Aí vou pedir cola a Walter Benjamin (...): não se contentarem em apenas criar produtos, mas também meios de produção. Fazerem teatro se perguntando o tempo todo o que é teatro, ao invés de tomá-lo, como você mesmo diz, como algo estanque, intocável, etc.”
 
            Quando questionado sobre a materialização de sua fala na atuação dos atores:
 
“Na metodologia usada para a confecção da dramaturgia e do discurso cênico, que procura valorizar ao máximo o universo simbólico e cultural...
as práticas cotidianas... transformando-os em signos.
E também no uso dos jogos de improvisação para deixar emergir deles, de dentro para fora, um acordo grupal, ao invés... do procedimento da direção impor marcas e movimentos.
A direção tem, sim, um papel ativo: olha, opina, diz o que tá dando certo, se a comunicação com a plateia está se efetivando, etc. Também propõe temas para improvisações e
até sugere marcas e movimentações, mas o critério para que elas sejam usadas é perceber se foram abraçadas pelo grupo e tornadas orgânicas.”

É do universo simbólico e cultural que sai o bem mais valioso do espetáculo. A parte que pode ser lida como um manifesto do corpo, pois se trata de uma valorização, não da arte como instrumento direto de uma voz conclamatória em tom de manifesto. Não se trata de “falar” explicitamente de problemas sociais ou dos abismos sociais existentes na cidade do Rio de Janeiro. Assim, tanto na Arena Carioca, como em várias manifestações culturais feitas por jovens da periferia, é a voz que se afirma e é o corpo que busca espaço. Não importa o que diz a letra, ou se a fala é de protesto. Ocupar o espaço e fazer sua voz ser ouvida é se impor buscando democratizar, não a só cultura, mas os meios e o conceito de cultura.
O espetáculo traz a o universo simbólico de quem pega o trem, de quem trabalha no centro e mora na Vila Cruzeiro. Traz, não para dizer que a cidade precisa ser democrática, mas para ocupar a cidade e fazê-la democrática, seja no plano simbólico da Canaã de Ipanema seja na ocupação concreta do teatro enquanto espaço físico e elemento conceitual.

1. CARVALHO, Adriana Lopes.  “Funk-se quem quiser”: no batidão negro da cidade carioca. Ed. Bom Texto SP2010

 

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