O que o teatro pode
fazer pelos jovens da Vila Cruzeiro? Pergunta um jornalista
ao professor e diretor teatral, Veríssimo Júnior. A resposta nos dá uma dica do
que podemos esperar do grupo Teatro Na laje. Responde o professor: “a melhor
pergunta seria o que os jovens da Vila
Cruzeiro podem oferecer ao teatro?”
O espetáculo apresentado na Arena Carioca Dicró possui o nada
sugestivo nome de "A viagem
da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa página do Facebook". O nome
descrição apresenta todo seu sentido quando a busca por Canaã de Ipanema é acompanhada
por passagens bíblicas que ilustram os registros fotográficos da “Jornada” de
um grupo de jovens até o dia de lazer na praia. A Zona Sul vira Canaã, o
facebook vira narrativa bíblica e os peregrinos passam a ser os heróis de uma
jornada de ressignificações e apropriações estéticas que tomam conta do teatro,
das músicas, da geografia do Rio de Janeiro e têm como ponto de partida, o
corpo.
A
pesquisadora Adriana Carvalho Lopes, ao estudar o Funk e a criminalização
sofrida por jovens da periferia, aponta os atos de fala como possibilidades
compreensíveis pelo contexto onde estão inseridos existindo, assim, uma
situação em que um ato de fala constrói um ambiente e por ele será construído.
Tudo isso ocorre em uma teia complexa de mútua construção. Citando Butler
Austin, Adriana aponta os atos de fala como elementos irredutíveis a si
próprios, posto que são impregnados de historicidade¹.
É
nesse ponto, que retomamos a intervenção do professor Veríssimo, pois a
apresentação dos atores da Vila Cruzeiro nos trazem uma infinidade de
intervenções em elementos tão estanques da nossa cultura. Primeiro, a própria ocupação
do teatro e a forma como isso acontece já se transformam em uma forma de ação
sobre um universo cultural repleto de liturgias e significados cristalizados no
imaginário de seus frequentadores: a plateia passiva e receptiva “consumindo”
cultura e aplaudindo na hora de aplaudir, rindo na hora de rir e se vestindo
como convém se vestir. Então, o que a Vila Cruzeiro pode oferecer ao teatro? A
resposta fica no depoimento dado pelo Professor (no facebook, claro):
“Celebração dionisíaca pura na
noite da última sexta-feira! Jovens de bermuda, tênis e chinelo, (...) adentra
o espaço da Arena Carioca Dicró, naquele momento transformada em SEU espaço,
para ver o grupo de teatro de sua comunidade, o Grupo Teatro da Laje, se
apresentar. Uma liga firme unia palco e plateia. A plateia alimentava o palco e
o palco alimentava a plateia. A plateia se via no palco e o palco se via na
plateia, num jogo de espelhos excitante, eletrizante e produtivo. A plateia
cantava e dançava com o palco e o palco descia pra cantar e dançar com a
plateia. Gritos, assobios, palmas, urros e comentários dirigidos ao palco
perpassavam o tempo todo a plateia. "Uma plateia má educada e despreparada
para o teatro!", esbravejariam alguns. "Uma plateia que reinventa o
coro dionisíaco, que revigora o teatro, que o faz reviver os melhores tempos do
teatro elizabetano. Uma plateia criada e formada pelo Grupo Teatro da Laje e da
qual ele muito se orgulha!", dizemos nós. EVOÉ, EVOÉ, BACO! VIVA O GRUPO
TEATRO DA LAJE! VIVA A GALERA DA VILA CRUZEIRO!”
A afirmação do
professor é totalmente condizente com o que vê, na apresentação, um expectador
leigo. A “bagunça” começa com os atores entrando, já cantando e promovendo a
primeira performance da noite. A plateia repleta de jovens como os já descritos
recebe os atores em sintonia com o que acontece no palco.
O cenário é simples e totalmente utilitário, com isso, o elenco promove
performances que acompanham as músicas, enquanto a plateia acompanha as cenas
que acontecem no palco. Música dançada no palco é música dançada na plateia.
Quando um enaltece seu próprio corpo e beija seu braço em uma irônica auto
exaltação, a plateia assovia e incentiva o narcisismo exagerado e cômico que
presencia. Ao perceber a reação da plateia, nosso narcísico personagem dá lugar
ao ator que lança olhares maliciosos para a plateia em um distanciamento digno
das grandes teorias teatrais.
Assim, segue o
espetáculo... Música, humor e sensualidade em uma crítica social que não se faz
em panfletos ou manifestos, mas na manifestação de corpos, vozes e posturas de
jovens que retratam todos os significados de uma simples (ou não) ida à praia.
São várias as
expressões e representações que o grupo busca em sua performance. A cada
música, uma apropriação diferente de um elemento cultural e uma criação nova,
uma fala nova se refaz. “Nós Vamos Invadir sua Praia”, do Ultraje a Rigor é
mais viva do que nunca, quando interpretada dessa forma.
Num dado momento, uma
obra de Vivaldi se mistura à batida Funk em um grande exemplo de apropriação do
intacto, daquilo que é culturalmente santificado e inconteste. A batida Funk
misturada à obra clássica serve de plano de fundo para que os atores se
manifestem, também, e interajam com o som e, novamente, com a plateia.
A apropriação da
cultura, como afirmou o Professor Veríssimo, não fica no simples gesto do “como
fazer” e do fazer diferente. Não se trata de chegar no teatro e mostrar o que
eles podem fazer, se trata de ocupar o teatro enquanto conceito, enquanto elemento
pulsante e vivo, que transforma jovens, mas é transformado por eles. Como
afirma o professor:
“Aí vou pedir
cola a Walter Benjamin (...): não se contentarem em apenas criar produtos, mas
também meios de produção. Fazerem teatro se perguntando o tempo todo o que é
teatro, ao invés de tomá-lo, como você mesmo diz, como algo estanque,
intocável, etc.”
Quando
questionado sobre a materialização de sua fala na atuação dos atores:
“Na metodologia
usada para a confecção da dramaturgia e do discurso cênico, que procura
valorizar ao máximo o universo simbólico e cultural...
as práticas
cotidianas... transformando-os em signos.
E também no uso dos
jogos de improvisação para deixar emergir deles, de dentro para fora, um acordo
grupal, ao invés... do procedimento da direção impor marcas e movimentos.
A direção tem, sim,
um papel ativo: olha, opina, diz o que tá dando certo, se a comunicação com a
plateia está se efetivando, etc. Também propõe temas para improvisações e
até sugere marcas e
movimentações, mas o critério para que elas sejam usadas é perceber se foram
abraçadas pelo grupo e tornadas orgânicas.”
É do universo simbólico e cultural que sai o bem mais valioso
do espetáculo. A parte que pode ser lida como um manifesto do corpo, pois se
trata de uma valorização, não da arte como instrumento direto de uma voz
conclamatória em tom de manifesto. Não se trata de “falar” explicitamente de
problemas sociais ou dos abismos sociais existentes na cidade do Rio de
Janeiro. Assim, tanto na Arena Carioca, como em várias manifestações culturais
feitas por jovens da periferia, é a voz que se afirma e é o corpo que busca
espaço. Não importa o que diz a letra, ou se a fala é de protesto. Ocupar o
espaço e fazer sua voz ser ouvida é se impor buscando democratizar, não a só
cultura, mas os meios e o conceito de cultura.
O espetáculo traz a o universo simbólico de quem pega o trem,
de quem trabalha no centro e mora na Vila Cruzeiro. Traz, não para dizer que a
cidade precisa ser democrática, mas para ocupar a cidade e fazê-la democrática,
seja no plano simbólico da Canaã de Ipanema seja na ocupação concreta do teatro
enquanto espaço físico e elemento conceitual.
1. CARVALHO, Adriana Lopes. “Funk-se quem quiser”: no batidão negro da cidade carioca. Ed. Bom Texto SP2010
1. CARVALHO, Adriana Lopes. “Funk-se quem quiser”: no batidão negro da cidade carioca. Ed. Bom Texto SP2010
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