Introdução
A proposta a seguir trata da
utilização do filme Uma Vida Iluminada
(2005; Liev Schreiber) como aula
inaugural em turmas de história, podendo ser utilizado com alunos do oitavo ano
do ensino fundamental, em diante.
Existe um grande desafio para o professor de história e abordar questões
com seus alunos, que fazem parte do cotidiano do historiador: qual o sentido da
história, e qual a razão de alunos tão novos terem que se identificar com um
passado que lhes parece tão distante. Existe uma razão, senão um acúmulo de
fatos passados, que justifique o tempo de seus dias dedicados à tal disciplina?
Não se pode ignorar que existe
certa legitimidade na recusa dos alunos em se motivar, ou o certo vazio que
eles sentem ao se sentirem tão distantes das razões pelas quais eles são
confrontados com o passado histórico, posto que a própria definição do trabalho
do historiador não é algo tão nítido para boa parte daqueles que não vivem o
cotidiano das ciências humanas.
Preocupado com a concorrência
que os filmes e demais formas de resgate do passado oferecem ao historiador,
Roger Chartier afirma que o conhecimento produzido pelo historiador não é mais
do que uma das formas de se relacionar com o passado. Assume, também, que
memórias ou filmes podem ser mais poderosos, nesse sentido, do que os próprios
livros didáticos. Buscando diferenciar o âmbito da memória e da história,
apresenta como uma possibilidade, o fato de
“à imediata
fidelidade (ou suposta fidelidade) da memória, opõe-se a intenção de verdade da
história, baseada no processamento dos documentos, que são vestígios do
passado, e nos modelos de inteligibilidade que constroem sua interpretação”
(CHARTIER; 2007)
Nesse
sentido, a utilização de um filme pode, a princípio, levar o aluno a questionar
o ambiente da memória e da história, enquanto condições distintas do resgate do
passado, mas indissociáveis em seu processo. O filme aqui não seria uma
tentativa de recontar o passado, mas de compreensão das formas como o passado
pode ser apreendido por quem se debruça sobre ele e, de que maneira, cada
interpretação pode se transformar em um objeto de interesse da história.
Em
outro momento, estabelece a diferença ente memória e história, situando a
primeira em um plano pertinente às exigências existenciais das comunidades. A
segunda, se estabelece como um saber aceitável e científico (CHARTIER; 2007).
Simplesmente, tratando de
filmes, sob uma perspectiva mais ampla não podemos considerá-los, como também
afirma Chartier, uma informação sobre o real, sem poder requerer a posição de
descrição dessa mesma realidade. Ao tratar, especificamente do filme escolhido
para este trabalho, temos duas dimensões distintas a ser exploradas: a
primeira, a do filme como um relato de um acontecimento histórico, no caso, uma
ocupação nazista; na segunda possibilidade, já estamos dentro do roteiro do
filme e podemos abordar a memória, enquanto resgate de um passado e o próprio
processo de funcionamento dessas “exigências existenciais”. É importante
ressaltar que para alunos mais novos, o conceito de memória e de história são
flexíveis ao ponto de se misturarem e se confundirem até chegar a significar a
mesma coisa, então, o alcance de um processo dito científico no trato da
história não deve ser sobreposto ao entendimento “do que é memória”. Estudar e
entender os processos de definição e atuação do campo da memória, seja quando é
agente significador de culturas, seja quando é projetada em meio a uma cultura
formadora de senso comum e, portanto, capaz de agir sobre sua própria
transmissão; é tão pertinente quanto a própria análise documental da história.
A primeira dimensão não se fará
tão relevante, pois não é do que se trata a escolha do filme, como estratégia
de ensino, mas à segunda, será dada uma atenção especial na própria análise do
filme, que será vista à diante.
A mistura entre as possibilidades
do filme e da memória se fazem presente ainda, no questionamento acerca das
possibilidades que Robert A. Rosenstone apresenta ao filme histórico, pois a
representação de um fato histórico em um filme é tão problemática quanto a
própria representação da história, pois sempre o passado pode ser substituído
por uma versão, ou por alguma projeção de como ele poderia ter sido
(ROSENSTONE; ). Então, novamente, nosso objeto aqui trabalhado pode cair nesse
dilema, em suas passagens que falam da guerra; bem como, à memória dada aos
personagens também incidirá os mesmos questionamentos.
É importante o aluno se sinta à
vontade para apreender do filme, conclusões que lhes sejam pertinentes e que
suas idades e estágios de desenvolvimento escolar sejam respeitados na hora de
um possível debate ou da inserção das possibilidades do filme na comunicação
com outras partes e momentos do desenvolvimento do aprendizado da história. A
ideia inicial é que Uma Vida Iluminada possa
ser revisitado em vários momentos do ensino dos temas referentes à idade
escolar do aluno, mas os pontos aqui tidos como possíveis de serem trabalhados
não devem ganhar status de “matéria” escolar, sim, serem vistos como potenciais
pontos de partida para que os alunos possam, à sua maneira, relacionar filme e
livro didático.
De acordo com Roger Odin, o
público nem sempre vai reagir com o filme, na perspectiva pretendida. Se tal
observação cabe ao próprio roteiro, ela é pertinente ao professor, que faz uma
apropriação didática da linguagem fílmica e corre o risco de não ser
correspondido em sua ideia inicial.
Públicos diferentes reagirão de
formas diferentes ao texto que lhes é apresentado. O que se, por um lado pode
parecer uma dificuldade posta aos objetivos da aula, por outro se faz uma possibilidade
de traçar caminhos que demonstrem aspectos sobre a relação do aluno com o tema
proposto.
O Filme:
Uma Vida
Iluminada é um filme que oscila entre o drama, a representação histórica e a
comédia. Seus personagens são muito bem delineados, em cenas que os constroem e
oferecem ao espectador muito mais do que meras descrições acerca de seu caráter
e de seus dramas. As falas, a bela fotografia e a trilha sonora em perfeita
harmonia com a série de acontecimentos que marcam a narrativa são mais
elementos no filme, pois se fazem potenciais significantes para a compreensão e
apreensão de todas as possibilidades que vão construir os personagens e oferecer
elementos que possibilitam acompanhar suas evoluções ao longo da trama.
As primeiras sequências do filme
mostram um painel com memórias de família e um narrador marcado pelo uso da
primeira pessoa, mesmo sem ainda ter sido “apresentado” à trama. Aparentemente,
o narrador se apresenta distanciado da história que se apresenta no painel,
pois fala de Judeus (que a associação entre a narração e a sequência de imagens
faz parecer ser a família ali representada) de forma irônica. Vale a atenção do
professor para essa primeira sequência, pois pode ser o início de uma discussão
acerca do preconceito que costuma-se ter com culturas por nós desconhecidas ou
ignoradas, assim, tem-se o primeiro ponto para o debate sobre a dimensão da
própria História, enquanto disciplina escolar.
Na sequência seguinte, o
narrador já tem um rosto e segue escrevendo o que parece ser um livro ou um
diário (no decorrer do filme, percebe-se que seus escritos compõem um livro ou
algo no mesmo formato). O ponto mais importante da sequência, para o que se
espera apresentar neste trabalho é sua fala a respeito de não entender o fato
de os judeus se preocuparem com o passado, fato que para ele, não fazia, até
então, sentido. Em sua perspectiva, o passado não é relevante.
Ironicamente, o narrador – Alex
– é a terceira geração de uma família que tem por atividade comercial, uma
agência de turismo especializada em guiar judeus em na busca de suas origens,
sobretudo, quando se tratam de famílias que buscaram refúgio em outros países,
por conta da segunda grande guerra. Os questionamentos de Alex, acerca da busca
pelo passado são mais do que facilitadores do debate acerca da própria
importância da investigação histórica como possibilidade de autocompreensão e
da perspectiva da nossa disciplina como uma ciência que muito se vale do
passado para explicar o presente.
Jonathan é o colecionador, um
judeu que centralizará as ações do filme. No plano temporal, é a partir de sua
chegada à Ucrânia e do encontro com Alex e seu avô, o cômico guia cego que além
de ser o motorista da expedição, é marcado por seu mau humor e aparente
antissemitismo. No plano da construção psicológica dos personagens, são suas
descobertas que significarão os novos (ou nem tão novos) conhecimentos que determinarão
mudanças significativas na autocompreensão dos outros dois personagens.
O lado cômico de Jonathan fica
por conta de ser um colecionador compulsivo e indiscriminado. O painel
apresentado no início do filme é, nitidamente, o resultado alguns anos de
cultivo do hábito e o apego especial por objetos relacionados a sua família.
O encontro entre o Judeu
americano e os inusitados guias acontece depois de uma cômica recepção
improvisada, quando Alex tenta fazer com que uma pequena banda de artistas de
rua, que se apresentava na estação de trem, receba seu cliente ao som do hino
dos EUA. A partir daí, elementos cômicos e dramáticos darão a tônica de um
choque cultural manifestado pela dificuldade de Alex com a língua inglesa, pelo
estranhamento em relação a algumas particularidades de Jonathan e pela
insistência do americano em se valer de seu guia turístico para se relacionar
com pessoas que apareciam em seu caminho.
Em sala de aula, os elementos
cômicos e dramáticos podem ser usados como uma espécie de termômetro, pois a
reação dos alunos pode apontar uma série de possibilidades no campo de suas
afetividades, assim, possibilitando que a análise fílmica e o objeto da aula
não se tornem “maçantes” ou os deixem dispersos.
Boa parte do filme se dá em uma
estrada e em algumas eventuais paradas para informações ou hospedagem. Existe
um fato interessante acerca da própria estrada, que não pode ser negligenciado.
Em um dado momento da viagem, os três saem de uma via movimentada e entram em
uma auto estrada, onde, na maior parte do tempo, o carro da empresa de turismo
anda sem a companhia de outros veículos. No final do filme, ao saírem da autoestrada
e entrarem novamente em perímetro urbano, os três personagens entram em uma via
bastante movimentada e o plano escolhido para a filmagem mostra o carro, de
cima, se misturando aos demais e “voltando à rotina” da cidade. É interessante
que a entrada e a saída podem servir de alegorias para a própria jornada de
pesquisa ou de conhecimento, pois o resgate do passado pode ser visto como a
entrada nessa estrada e a mudança de cenários detectada na saída, sobretudo por
personagens tão modificados por suas jornadas ao seu passado, representa um
retorno ao cotidiano, ao mundo das relações do indivíduo, mas dessa vez,
acrescido de uma gama de memórias e conhecimentos que serão ali
reexperimentados nessas mesmas relações habituais.
A estrada, marcada por uma bela
fotografia e pela quase ausência de outras relações, senão as que ocorrem
dentro do carro, é quase a perfeita alegoria do mergulho no passado e no
autoconhecimento.
O objetivo da jornada é uma vila
chamada Trachimbrod e a dificuldade está no fato de as poucas pessoas as quais
as informações são pedidas desconhecerem tal vila. Existe na busca, uma relação
que se coloca cada vez mais intensa entre os personagens. A tensão nos momentos
mais complicados da viagem mostra uma relação de cumplicidade, mas ao mesmo
tempo, conflituosa.
A busca que justifica a
empreitada dos três personagens tem seu início com uma fotografia, um adereço e
um depoimento feito em leito de morte. A partir daí, juntando os personagens,
como são descritos e a própria estrada, podem ser comparados, em uma
perspectiva própria para a sala de aula, com o trabalho que o historiador tem
quando se depara com um dado objeto ou documento que se faz fonte histórica.
Nesse exercício, pode-se trabalhar a ideia de uma fonte histórica que não “fala”
por si só.
Existe ao longo da trama uma
série de falas e diálogos que podem ser problematizados pelo professor. Um
deles se dá no momento em que ao se dirigirem a um garoto em busca de
informação, o pequeno inicia o seguinte
diálogo:
- O que é Trachimbrod?
- Só um lugar
que procuramos.
-Se não tem nada
lá, por que estão procurando?
O menino encontrado à beira da
estrada não percebe a importância de uma busca, pois a princípio, se não existe
uma objetividade aparente, nada acaba justificando uma busca.
Outro diálogo digno de nota
ocorre entre Alex e Jonathan, quando o primeiro questiona o hábito do segundo
de coletar objetos e revesti-los em um pequeno saco plástico (semelhantes ao
usado na sequência onde a coleção é apresentada ao público). A resposta de
Jonathan tem um ar de uma conclusão recente e pouco solidificada: “talvez por
medo de esquecer”.
A primeira sequência aqui
destacada pode ser trabalhada em seu sentido mais óbvio, que é como ponto de
partida para o mesmo conhecimento, mas dessa vez, tangenciando o próprio
aprendizado da história, como algo que não pode ser submetido a uma lógica de
simples funcionalidade superficial, pois todas as descobertas feitas ao longo
do filme, também não estiveram sujeitas a essa mesma funcionalidade. O segundo
fragmento é mais representativo, pois o Personagem Jonathan ao final da trama,
se desfaz de dois objetos pessoais e de punhados de terra que coleta quando a
viagem chega ao fim. O momento em que Jonathan distribui os objetos é tão
marcante emocionalmente, que vale a pena incentivar um debate sobre o que
poderia ter feito um colecionador inveterado a abrir mão de tantos objetos
significativos para si. Possivelmente, aqui, pode-se ter um bom termômetro
sobre a atividade com o filme.
A jornada em busca de
Trachimbrod segue e o personagem do avô de Alex começa a viver uma virada na
trama, o lado cômico de velho rabugento vai dando lugar ao personagem mais
dramático, marcado por tomadas de câmera que o isolam mais em meio a paisagem e
uma trilha sonora mais compatível com a reflexão do que com o comportamento
explosivo. Como se fosse passar uma mensagem ao espectador, seus movimentos são
mais surpreendentes, seus gestos mais lentos e a forma como ele se relaciona
com o ambiente dão pistas de uma quase misteriosa familiaridade, que virá a ser
revelada.
Quando se depara com algumas
ruínas, o ancião tem seu rosto em primeiro plano na imagem e o seu olhar é a
melhor forma de perceber que existe, ali, uma relação com o ambiente. O
contraplano, marcado pelo “achado” é contemplado como se significasse algo
muito marcante.
As cores vivas da fotografia vão
cedendo lugar para as tomadas em preto e branco enquanto um flashback mostra um enfileiramento de
botas militares, pés descalços e calçados mais simples, contrapostos. Quando a
imagem se revela, temos o amadurecimento de um dos personagens e a mudança que
os outros dois personagens principais e o espectador têm do Avô supostamente cego
e supostamente antissemita, que passa a ser mais cortês e mais disposto à
interação com seus companheiros de viagem aos poucos, também revela-se ao
deixar pistas de não ser a primeira vez a estar no lugar onde estavam.
Jonathan partiu
para a Ucrânia buscando um lugar onde encontraria a pessoa que ajudou seu avô a
fugir, buscava saber mais sobre seu passado e concluir a busca iniciada com a
foto e as pistas que tinha, já, nos EUA. O fim da sua busca se dá em um
ambiente de extrema felicidade, em se tratando de fotografia. O carro se
perdendo em meio a uma plantação de girassóis (que trazem sua simbologia para
misturar roteiro e fotografia) e uma casa centralizada com roupas brancas em um
varal.
Ao buscar a tomada que parte de
um plano horizontal até se tornar aérea, a casa e o varal são emoldurados pela
plantação que se perde em um foco quase infinito e quase homogêneo.
Simultaneamente ao belo diálogo
com a moradora da casa, Alex, enquanto narrador, nomeia seu último parágrafo:
Capítulo 5 – iLUMINAÇÃO.
Ao perguntar para a senhora que
lava uma peça de roupa branca, onde fica Trachimbrod, Alex recebe uma bela e
misteriosa resposta: “Eu sou Trachimbrod”. À resposta, segue-se uma série de
descobertas sobre fatos terríveis e desencadeamentos de memórias que não podem
ser descritas, senão, pelo nome dado ao capítulo: iluminação.
A sequência virá a descortinar o
mistério iniciado com a mudança de comportamento do avô e o final da busca.
Trachimbrod não existe, senão na
memória de uma sobrevivente do massacre que dizimou o local e seus habitantes;
além de uma placa fincada ao solo à beira de um rio, por isso, muitos pontos
podem ser levantados acerca da memória, da importância da preservação e do
constante resgate do passado.
Novamente com a fotografia em um
outro tom, revela-se a memória do avô, a forma como sobreviveu ao mesmo
massacre e o gesto simbólico de retirar a jaqueta com a estrela de David, gesto
que explica o fato de sua família não conhecer sua ascendência judia.
Em Uma Vida Iluminada, não só o
passado é explicitado, mas nosso personagem se relaciona com ele,
ressignificando-o e por consequência sendo por ele ressignificado. É o passado
histórico que se faz presente, não só a sequência de fatos ocorridos ganham
importância na narrativa. Por isso, o esforço em se compreender a história e a
apropriação do passado vão se materializar no campo das representações, não na
simples tomada de consciência sobre fatos idos.
Obviamente, não seria interessante interromper o filme a cada observação,
mas alguns pontos devem ser explorados pelo professor, além dos já comentados:
·
A simbologia da coleção de objetos;
·
A influência dos EUA na vida de Alex;
·
A importância da história para os judeus;
·
O porquê da história contada por capítulos;
·
O significado do gesto simbólico da jaqueta;
·
“Descoberta”
do neto pelo avô e do avô pelo neto, resultando em manifestações de
afetividade;
·
O significado da foto como ponto de partida da
busca;
·
Possibilidades de interpretação para o final do
filme, quando atores que passaram pela trama, retornam já em solo americano e
no caminho de Jonathan (pessoas comuns tendo rosto);
·
Diferença entre a coleção de Jonathan e a que
caracteriza Trachimbrod;
·
A importância da Senhora para Trachimbrod;
·
Simbologia do girassol;
·
Superexposição à luz e a aproximação em close no momento onde o Avô se recorda
de seu passado e quando Jonathan sai do aeroporto.
Ficha técnica:
Título original: Everything Is Illuminated;
Ano: 2005;
Língua: Inglês
Diretor: Liev Schreiber
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