sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sobre a música João do Amor Divino - Gonzaguinha














Esta música está naquele que, para mim, é o melhor  disco deste poeta genial que, como poucos, soube representar nosso povo em sua relação com a história.

Gonzaguinha, em sua arte, não descrevia a história ou contava fatos em versos. Tal qual um simbolista ele captava a essência daquilo que ia representar e criava as imagens que descreveriam aquilo que pensava sobre determinada situação. Seu realismo não se torna anacrônico nem,tão pouco, um retrato de época porque ele falava dos sentidos e sentimentos possíveis do homem frente ao seu momento histórico. E isso não tem começo nem fim é humano e pronto.

Nesta música, em especial, o elemento poético e seu propósito estão na forma em que, ao mesmo tempo, em que seu personagem é apresentado, vai criando as imagens e apresentando em simples versos questões que renderiam horas de debate. Neste caso, esta ideia fica flagrante quando a
chepa da feira não chega a estarrecer, as filas e a relação com a comodidade proposta pela ideia da proteção (ou recompensa) divina.
Seu “bilhete mal escrito”, também não é uma simples oração a ser musicada. Bem como, o verso “ele se mexeu” que aparece isolado tanto na letra impressa como na música a fim de dar o toque mágico do enredo.
Enredo este, que guarda para o final uma maravilhosa surpresa quase fantasiosa onde o homem se levanta depois de ter sua tragédia pessoal servido de entretenimento para os indiferentes transeuntes
(isso também geraria horas de discussões).
O fato de ele se levantar em oposição à opção natural que seria sua morte é o elemento poético que dá sentido à proposta do artista de representar o ciclo trágico de miséria e sobrevivência do trabalhador brasileiro que é obrigado a se valer de toda a sorte de “malabarismos sociais” chegando ao extremo máximo que neste caso é tirar vantagem do desesperado suicídio para garantir sua sobrevivência (esta é uma contradição que valeria toda atenção deste espaço).
A música não conta com as belas melodias que marcaram a obra de Gonzaguinha. Entretanto, vale ressaltar que as melodias de suas músicas acompanham, em sua maioria, o sentimento pertinente ao que apresenta a letra e o enredo que por sua vez alterna momentos mais tensos e mais suaves ao sabor da ideia apresentada.
Esta não é uma das músicas mais consagradas do artista, mas é uma das mais emblemáticas para a compreensão da proposta estética e Gonzaguinha e a relações sociais tão marcantes neste conturbado período político e social de nosso país.
Para ouvir esta e outras músicas clique aqui




João do Amor Divino

Gonzaguinha

Composição : Luiz Gonzaga Jr.

39 anos de batalha, sem descanso, na vida
19 anos, trapos juntos, com a mesma rapariga
9 bocas de criança para encher de comida
Mais de mil pingentes na família para dar guarida
Muita noite sem dormir na fila do INPS
Muita xepa sobre a mesa, coisa que já não estarrece
Todo dia um palhaço dizendo que Deus dos pobres nunca esquece
E um bilhete mal escrito
Que causou um certo interesse
É que meu nome é
João do Amor Divino de Santana e Jesus
Já carreguei, num guento mais,
O peso dessa minha cruz
Sentado lá no alto do edifício
Ele lembrou do seu menor
Chorou e, mesmo assim, achou que
O suicídio ainda era o melhor
E o povo lá embaixo olhando o seu relógio
Exigia e cobrava a sua decisão
Saltou sem se benzer por entre aplausos e emoção
Desceu os 7 andares num silêncio de quem já morreu
Bateu no calçadão e de repente
Ele se mexeu
Sorriu e o aplauso em volta muito mais cresceu
João se levantou e recolheu a grana que a platéia deu
Agora ri da multidão executiva quando grita:
"Pula e morre, seu otário"
Pois como tantos outros brasileiros
É profissional de suicídio
E defende muito bem o seu salário
Do álbum: Gonzaguinha da Vida (1979) - EMI/ Odeon.

4 comentários:

Elaine disse...

Sempre admirei muito Gonzaguinha, mas nunca tinha lido nada sobre ele como este texto.Muito bom. bj

Iane Maria disse...

Felipe, que orgulho de você, garoto!
Adorei seu texto.
Deu até vontade de ouvir o Gonzaguinha e me pergunto agora como foi que "me perdi" dele, gostava tanto e nunca mais ouvi, nem li nada, nem vi notícia nunca mais soube nada a respeito... vai que é pq não tem um aplicativo em sua homenagem no Facebook! hehehe

=D

Continue assim, melhor falar de música que de futebol.rs

amaraborde disse...

Eu não conheço a música, e minha pré-tecnológica internet discada não me permite conhecê-la, mas eu gosto muito do Gonzaguinha, e o admiro, e, de resto, eu confio no seu tato!

Anônimo disse...

Na verdade o Gonzaguinha queria tirar um sarro de seu pianista, arranjador e compadre JOTA MORAES (também conhecido como JOTINHA), que na verdade se chama JOÃO DO AMOR DIVINO. Levou um sarro, mas ganhou uma belíssima letra. Deve estar com saudade do Gonzaga, porque agora é arranjador da MARIA IRRITA, coitado.